A moto e a liberdade
Essa história é atemporal e apenas espelha uma das várias facetas do sentimento de liberdade gerado no momento em que se pilota uma motocicleta.
Tenho minha clássica, uma Honda CB360, mas o fato ocorreu a bordo de minha moto que uso para ir ao trabalho.
No trabalho o dia estava daqueles, o telefone não parava de tocar com problemas cuja resolução ainda não havia chegado a esse mundo e para piorar ainda era uma segunda-feira.
Naquele dia o trabalho me consumiu bastante e o que eu mais queria era descer para a garagem, pegar a guerreira e cair no trecho, o que só consegui por volta das 21:00h.
Liguei a máquina e saí pensando que pelo menos naquele horário o trânsito estaria um pouco melhor, pequei a Radial Oeste e as coisas não estavam como esperava.
Praça da Bandeira parada e na Presidente Vargas, a agulha que leva a Francisco Bicalho já estava lotada de pessoas do lado de fora do carro e na minha cabeça só escuridão.
A bordo da magrela fui permeando entre os carros ganhando terreno pouco a pouco como um soldado entrincheirado avançando num campo de batalha, os carros se compactaram de uma forma que até de moto era difícil de passar, quanto aos motoristas, uns se mantinham reclusos e encapsulados em seus carros e outros optaram por se juntar em pequenos grupos para que num bate-papo informal a suas dores pudessem estreitar.
Nessa atmosfera fui avançando até que cheguei na boca de entrada da ponte Rio-Niterói onde a cena era insólita.
Dois veículos da concessionária parados com os luminosos ligados davam o tom informando que a m... era grande.
Nada podia passar, de motos a caminhões.
Naquele momento a concentração de motos a frente dos carros já era grande e não paravam de se aglomerar.
Ali chegando me posicionei já na terceira fileira.
Num momento olhei para trás e a 4ª, 5ª e a 6ª já haviam se formado.
O desânimo tomou conta de mim e o único fato positivo até então era noticia que vinha do rádio da viatura de apoio informando que não havia vítimas.
Observava que de longe vinha o Scania reboque da ponte voltando na contramão carregando um outro veículo grande que fora avariado e na lentidão que vinha sabia que a coisa ainda iria demorar, os motores desligados salientavam um sentimento de abatimento que pairava sobre todos que não viam a hora de chegar em suas residências.
A situação permaneceu assim por uma eternidade e naquela altura não fazia ideia de que aquele dia miserável iria terminar com uma passagem daquelas que guardamos para o resto da vida com saudades.
Pois bem, o reboque vinha se aproximando quando escutei a primeira explosão.
Um motoboy dava o sinal com o mata-motor de sua moto de que aquele tormento tinha que acabar... a explosão despertou uma Hornet que berrou ferozmente os seus quatro cilindros zangados mostrando que não iria tolerar aquilo por muito mais tempo, na sequência as explosões se multiplicaram como num campo de batalha.
Os profissionais da ponte, vendo o inicio do motim entrelaçaram as mãos de forma a fechar qualquer brecha e em seus semblantes ainda se podia ver confiança.
Mais um segundo se passou e a coisa parecia incontrolável, as explosões ocorriam de forma alucinada e motores urravam por liberdade.
Observava que os semblantes daqueles que interrompiam o trânsito haviam mudado, eu poderia jurar que já começava ir para o pânico.
Foi quando a mesma Hornet berrou ameaçadoramente por duas vezes e investiu contra o cerco rompendo-o com o giro do motor já nas alturas, seu roncado ecoou para a eternidade como um grito de liberdade numa Costa e Silva completamente deserta.
Esse se tornou o sinal que a cavalaria precisava para atacar.
Na minha cabeça já escutava o toque da corneta com o "avançar cavalaria e degolar o inimigo" !
O primeiro pelotão partiu em fúria, com alguns despreparados ficando para trás não conseguindo ligar suas máquinas que falharam naquele momento crucial atrapalhando o deslocamento de algumas colunas do segundo pelotão.
Nesse momento o motor da minha NX4 Falcon já estava em toque de marcha aguardando a sua vez de atacar.
O terceiro pelotão saiu e naquele momento minha reação foi igual a de todos os outros.
Primeira, segunda, terceira... e o acelerador ao máximo... a Ponte era nossa e a frente haviam 13 quilômetros a avançar com domínio único e pleno das motocicletas, seja ela uma 125 ou uma grande esportiva, todas despejavam potencia reprimida dos motores ao máximo.
Entrei na grande curva, quinta marcha engatada, o velocimento registrava 150km/h e eu monitorando o contagiros de forma a evitar a chegada da zona do inferno, mesmo nessa velocidade era ultrapassado por algumas maquinas maiores porém também deixava para trás outras valentes motocicletas... muitos deitavam sobre suas motos, pernas esticadas para trás, em busca da melhor aerodinâmica.
Iniciei a subida do vão central quando senti o chão estremecer e minha moto balançar, meu coração disparou de susto quando uma SRAD passou colado a mim pela direita e uma FIREBLADE ziguezagueava buscando passagem pela esquerda, ambas mediam força, a propulsão que se encontravam os motores lembravam dois caças bombardeiros e já em poucos segundos desapareceram cruzando o alto do vão central.
Quando começou a descida, vendo a ilha do Mocanguê percebi que aquele momento teria um fim e nessa hora a empolgação fez o contagiros de minha moto beijar a zona do inferno.
Olhar pelo retrovisor e ver os pequenos pontos luminosos e trêmulos vindo atrás me dava a confiança e certeza de que não poderia retroceder, devia continuar até a praça do pedágio, mesmo que isso custasse a saúde do motor de minha magrela.
As luzes amarelas da praça do pedágio piscando desertas indicavam o fim da aventura que iria deixar saudades.
Ao chegar, muitos ainda permaneciam com adrenalina a mil, explosões e alarido podiam ser escutados mostrando que naquele momento as motos estavam no controle.
Paguei o pedágio e dali até Icaraí não mais judiei do motor da magrela, voltando a minha rotina diária que consiste em uma pilotagem serena, tranquila e de respeitador das leis imaginando que aquele havia sido um dia especial, onde todos a bordo de suas motos, da mais frágil 125 até a mais imponente superesportiva compartilharam igualmente de uma única e mesma emoção.
A mais pura liberdade.
Aluizio
aluizio.cunha@hotmail.com
Niterói - RJ