O COMEÇO DE TUDO
(...) Estávamos em 1977.
A única ligação entre Praia Grande e São Vicente na época era a já velha Ponte Pênsil, que ficava congestionada em dias de movimento, pois só se passava em uma direção de cada vez, gerando longas e demoradas filas e sempre me imaginava escapar com uma motocicleta.
A parada do ônibus que usávamos era no ponto final da linha, que ficava bem na saída do quartel da Fortaleza de Itaipu. Tinha um bar / lanchonete em que os motoristas tomavam um lanche enquanto aguardavam a hora de sair. Neste bar eu não tinha pressa, pois quase sempre ficava estacionada uma motocicleta grandona, azul, que eu ficava olhando embevecido. Reparei que ela parecia pertencer a um cidadão alto e forte que vestia uniforme da guarda portuária de Santos. Ficava decepcionado quando não via a motona estacionada lá.
O tempo foi passando. Em meados de 77, meu pai, que então era ten cel, foi transferido para Brasília . A família seguiu para a Capital Federal e eu, que fui obrigado a cumprir o Serviço Militar por um comandante insensível e troglodita, fiquei só, em Praia Grande. Comecei morando nos alojamentos do quartel e depois passei a ocupar um sofá na casa da namorada.
Bom, já que eu estava ali contra a vontade, tinha que aproveitar e buscar alguma compensação. Fiz os cursos que me foram oferecidos, sempre passando em primeiro lugar, e com isso tive a oportunidade de ficar por mais tempo no Exército, agora como profissional temporário, recebendo um soldo até razoável para um garoto de 20 anos.
Um belo dia encontro no ônibus que ainda utilizava para deslocamento, aquele senhor grandalhão que eu pensava ser o dono da moto que ficava estacionada no ponto final. Tive coragem de abordá-lo e perguntei se ele era mesmo o dono daquela motocicleta. Era. Perguntei se não pensava em vendê-la e ele disse que podia sim, pensar em vender a moto. Descemos do coletivo, ele me deu o seu endereço e depois subiu na moto e deu partida no pedal, usando seu peso, que não era pouco. Tum tum tum tum tum... Que ronco lindo! Que vontade de ter aquela moto. Ele foi embora e eu guardei com carinho o endereço do camarada. Depois disso não vi mais a moto no local de sempre. A Motocicleta era uma CB 450 ano 1969.
Após algumas semanas, criei coragem e fui até a casa dele. Seu nome era Celmis. Encontrei apenas a mãe dele em casa, que me disse para esperar que ele estava para chegar. Ofereceu-me um café que estranhei muito o gosto. Depois vim saber que não era café, era cevada.
Celmis chegou e eu fui direto ao assunto. Quando você quer pela moto? Não lembro exatamente o preço, acho que eram seis mil cruzeiros no dinheiro da época. Falei que podia dar dois mil de entrada mais quatro parcelas de mil. Ele aceitou. Bem, onde está a moto? A moto estava em São Paulo, na Vila Carrão para uns reparos, ele me informou. Assim, mesmo sem eu analisar o estado atual da moto ou levar alguém que pudesse opinar, fechamos negócio e marcamos um dia para ir buscá-la.
Antes disso o Celmis me levou para ver uma CB 350 dourada, que estava a venda numa casa próxima, mas eu não gostei muito. Havia uns pontos de ferrugem no escapamento... E era mais cara do que a 450. Eu era muito inocente, só queria saber da tal CB 450 e não percebi que teria sido muito mais vantajoso comprar a CB 350 que estava inteira.
Finalmente chegou o dia de irmos buscar a moto. Eu não agüentava mais de ansiedade. Pegamos um ônibus para São Paulo, depois outro ônibus para a tal Vila Carrão e finalmente pude contemplar a motocicleta que estava adquirindo com olhos de comprador apaixonado, ou seja, turvo pela emoção. Sinceramente, ela não estava exatamente como eu imaginava, mas pensei; só está precisando de uns cuidados para ficar nova. Esperamos muito tempo ainda para soldarem o pedal de câmbio e fazerem outros serviços que eu não consegui acompanhar. Passei o tempo apreciando a primeira moto com motor de Brasília montada no Brasil. A base dela era um quadro de Indian alargado e o tanque de gasolina era no formato de um caixão de defunto pintado com motivos fantasmagóricos. Havia até alças no ataúde!
Uma voz em minha cabeça dizia: Desista, ainda é tempo. Existem outras motocicletas no mundo. Outra voz dizia: Essa é única, não perca esse negócio.
A moto ficou pronta e o motor pegou obediente, quer dizer, tossindo um pouco e só depois de muitas pedaladas, mas isso não era nada demais, eu pensava. Subi na garupa com uma confiança que não tenho hoje e seguimos de volta para Santos. Não me lembro do percurso dentro de São Paulo, mas lembro muito bem que na Anchieta começou uma garoa que virou chuva grossa na descida da serra. Nesse ponto o motor falhava e o Celmis dizia que era a bobina. Também estávamos sem freio dianteiro. Não sei como eu sobrevivi àquela viagem. Cheguei todo encharcado. Não sei porque fui fardado. Será que era pretensão de voltar pilotando? Creio que sim. Por sorte não cometi essa ousadia.
Por fim, totalmente molhados, chegamos na casa do Celmis. Tomei outro café de cevada e ele me ensinou a ligar a moto para que eu fosse pilotando para casa. Ah, isso eu fazia questão! A chuva diminuiu, mas Praia Grande nessa época não tinha muitas ruas pavimentadas, saindo da orla da praia, a maioria das ruas secundárias se transformavam em lamaçais quando chovia. E era exatamente essa a situação naquele momento, no início da noite.
Subo na moto, consigo ligar o motor (ela tinha partida elétrica, mas não estava funcionando), engato primeira e saio devagarinho no maior lamaçal. Não andei cinco quadras e a moto morreu. Tentei religar e nada. Empurrei desajeitadamente aquela bicha pesadona e nada. Um irmão do Celmis que passava numa lambreta me ajudou, mas só consegui quebrar um cabo, acho que o do acelerador e desisti. O camarada que me ajudou falou para levar a moto de volta, mas eu não quis. Queria porque queria chegar na casa da namorada com a motocicleta, nem que fosse empurrando! E assim foi. Empurrei a moto por mais uns 10 quarteirões de ruas enlameadas até que, por fim, cheguei. Orgulhoso, sujo de lama e molhado até os ossos. Chamei a Márcia e a Dona Idalina, sua mãe, para mostrar a Minha Motocicleta! Não entendi muito seus olhares reprovativos... Parece até que elas não gostaram muito do que viram. Talvez fosse porque já era noite e a moto estava suja... Coloquei a bichinha na garagem do prédio e esperei ansiosamente o dia seguinte chegar para lavar, polir e arrumar a moto. Quase não dormi. Passei a noite sonhando acordado com os passeios que faria com a namorada na garupa.
A CB vivia na oficina. Eu sonhando com passeios e a moto em oficina autorizada acabando com o meu dinheirinho. É, eu levava a moto para autorizada porque não conhecia outra oficina. Gastava tanto que até consegui com o Celmis o adiamento do pagamento das parcelas combinadas. Lembro que eu ia para o quartel de bicicleta enquanto alguns colegas de farda, menos pretensiosos do que eu, rodavam com novíssimas Harleys / Motovi 125. Empurrei muito aquela moto. Hoje eu acho que muitas vezes a moto parava por falta de gasolina. Havia a cultura de que motocicleta era veículo econômico, mas a 450DOHC era beberrona e eu acho que ela não fazia mais do que 14km por litro.
Terminei por comprar também uma Harley / Motovi 125 preta, pois o último diagnóstico da Camilo Motos era de pistão furado na CB 450, além de um braço da balança rachado. Lutei muito, gastei mais do que podia e por fim desisti de ter moto grande, preferindo ter uma moto que me servisse bem, para o dia a dia e para passeios e viagens nos finais de semana.
Não autorizei a execução do serviço caro e incerto na DOHC e pedi para que a moto ficasse guardada na oficina mesmo. Finalmente, recebi uma proposta de um médico militar, que servia no mesmo quartel que eu, para trocar a 450 por duas Harleys 1200 ano 1949 semidesmontadas. Propus ao Celmis (eu ainda lhe devia quatro parcelas de mil cruzeiros) que fosse a Campinas-SP (onde as "bicheiras" estavam, em um porão) avaliar estas motos e decidisse se valeria a pena a troca, desde que ele ficasse com uma das Harleys, depois que eu escolhesse a minha, como quitação da dívida.
Arranjei um caminhão, emprestei dois recrutas e fui buscar as Harleys. Elas estavam muito empoeiradas, num porão escuro, misturadas com um monte de cacarecos. Depois que a colocamos no caminhão, escolhi a verde para mim, estava mais completa. Era uma moto com alavanca de câmbio na mão, embreagem no pé, rabo duro e suspensão dianteira "stearling". Meu Deus, o que farei com isto?
(...)
Obs: Este texto foi extraído do livro "Histórias de Motocicleta", de minha autoria.
Luiz Almeida
Fortaleza - Ceará