Caros Amigos,
Lendo o Ponto de Vista sobre as loucuras cometidas nos anos setenta, lembrei-me desta história, que não diria ser bem uma loucura, como os pegas e outras irresponsabilidaes cometidas. Procurei nas gavetas empoeiradas da memória e consegui escrevinhar esta história. Desculpem-me por não ter encontrado naquelas gavetinhas mais detalhes sobre consumo, paradas para abastecimento, etc. Mas em termos gerais, a história está aí. Espero que gostem.
Rabada com Agrião
(Viagem de Santos ao Rio - 1979)
Estávamos em 1979. Eu no exército e pilotando uma atrevida RD 350 1973. Havia um colega de arma, o Calmon, que era carioca e estava servindo comigo na Fortaleza de Itaipu, em Praia Grande, Baixada Santista. A família dele morava em Nilópolis e ele sempre falava que o prato especial que a mãe dele fazia era uma tal de Rabada com Agrião e que um dia iríamos à Nilópolis experimentar o banquete.
Certo dia o Calmon chegou falando que a família nos esperava para a tal rabada. Vamos de moto, certo? Perguntei. Ele concordou. Calmon ainda não tinha moto naquela época - veio ter uma CG 125 meses depois. Tenho certeza que influenciei muitos colegas militares a comprarem motocicletas. Eu ainda suportava levar marmanjo na garupa e combinamos de sair na sexta feira à tarde, conseguindo permissão do nosso comandante de bateria para sair do expediente um pouco mais cedo.
Eu já tinha feito várias viagens de Santos ao Rio de Janeiro de moto. A primeira delas, que foi também a minha primeira viagem solitária, foi numa Harley/Motovi 125 ano 78. (conto esta aventura em meu livro Histórias de Motocicleta) Depois fiz várias viagens pela Dutra com a RD. Desta vez, propus ao amigo irmos pela Rio-Santos, que eu não conhecia e imaginava ser a viagem mais curta do que pela Dutra, além de não ter que enfrentar o trânsito de São Paulo.
A RD não precisava ser revisada, era só abastecer os tanques de gasolina e de óleo dois tempos, eu a deixava sempre em ponto de bala, quer dizer... Precisava trocar o pneu traseiro, mas eu julguei que dava para fazer a viagem.
Almoçamos no quartel, arrumamos nossas poucas bagagens e por volta das três da tarde pegamos estrada. Percorremos um pouco da rodovia Pedro Taques, passamos pela Ponte Pênsil, seguimos pela orla de São Vicente e Santos até o ferry boat para Guarujá. Depois fomos pela sinuosa rodovia Guarujá-Bertioga para mais um ferry boat. Como eu gostava daquelas curvas da Guarujá-Bertioga!
Depois da travessia do canal de Bertioga, começava propriamente a Rio-Santos. Logo no começo do estradão de piçarra havia uma enorme placa alertando que não era recomendável o tráfego em dias de chuva. Ainda bem que neste dia o tempo estava bom.
Fomos lentamente enfrentando a buraqueira e o constante chacoalhar das costelas-de-vaca. A RD se comportava bem, mas nossa velocidade não era superior a 50km por hora. Para atravessar as muitas pontes de madeira que havia no percurso, eu pedia o Calmon para descer da moto. Era temeroso atravessar aqueles pontilhões sem amuradas e com tábuas colocadas ao comprido, no sentido das rodas da moto. Isso atrasava ainda mais nossa viagem.
Passando uma das muitas pontes !
O dia já estava quase terminando quando paramos para descansar em Boissucanga, que era então uma pequena vila. Tomamos refrigerantes e nos preparamos para encarar a subida de serra que enfrentaríamos em seguida. Eu já tinha ouvido falar que aquela passagem era uma das piores e queria ter alguma luz do dia para enfrentá-la. Na saída do bar um bêbado se jogou na nossa frente e quase nos derrubou da moto. Desviei a tempo, xingamos o cabra e fomos embora. Logo em seguida escutamos tiro! Putz! Será que o bêbado estava armado? Perguntei-me mentalmente ao mesmo tempo em que acelerava forte a RD. Para nosso alívio, logo verificamos que os "tiros" não passavam de fogos de artifício usados em um comício logo em frente.
Calmon na Barra do Una
Não foi fácil levar a RD na subida da serra de Boissucanga, Eram muitas pedras soltas e erosões. Acho que meu espírito de trilheiro nasceu ali. Neste difícil trecho cruzamos com dois carros de combate (Urutus) que ainda estavam sendo testados pela Engesa. Nós, milicos, sabíamos do projeto, mas nunca tínhamos visto estas novidades bélicas nacionais. Não posso negar que curtimos muito estarmos na mesma estrada em que testavam os Urutus.
A RD continua heroicamente vencendo as intermináveis costelas-de-vaca sem reclamar. Eu, que ia de capacete aberto com óculos de proteção, comia poeira sempre que éramos ultrapassados ou quando cruzamos com outro veículo.
Apesar de ter que pilotar com muita atenção no que seria uma estrada, não pude deixar de observar a beleza única daquele litoral. A cada curva uma nova e pequena praia. O mar a entrar na terra e a serra a entrar no mar. À nossa esquerda, da exuberante mata atlântica surgiam diversas cachoeiras. Fiquei fascinado com aquela região. Tanto que, nos anos seguintes, já com motocicleta apropriada, DT 180, não perdia oportunidade de percorrer trilhas por ali.
Finalmente, depois de São Lourenço, Boracéia, Boissucanga, Maresias, Barra do Una, Toque-toque pequeno, praia vermelha, Toque-toque grande, Praia Brava, chegamos em São Sebastião. Foram quase quatro horas para vencer os cerca de 100km de estrada carroçável. Agora era asfalto. Víamos Ilha bela entre os grandes navios petroleiros ancorados no porto. Um dia volto e pego o ferry boat para conhecer a Ilha. Aproveitei para abastecer a RD, que teve um consumo abaixo dos quatorze km por litro.
Já era noite quando passamos por Caraguatatuba, depois veio Ubatuba, cruzamos a divisa de estados e logo à frente estava a linda Paraty. Ainda não seria desta vez que eu conheceria a linda e histórica Paraty. Eu queria chegar no Rio ainda na sexta feira.
Dali para frente tínhamos um bom asfalto e deliciosas curvas. Mas estava ficando tarde e meu companheiro na garupa pediu para darmos uma parada porque ele estava com sono. Creio que já passava de meia noite. Passamos ainda pelo iluminado canteiro de obras da Usina Nuclear de Angra e depois paramos em um Belvedere naquela região. Era um lugar bonito e bem cuidado. Ficava na beira de um barranco e o mar batia forte lá embaixo. Havia bancos e mesas de cimento e até uma churrasqueira. Uma lua iluminava a noite.
O Calmon deitou-se em um dos bancos e logo dormiu. Eu, que não sou bom de pegar no sono, fiquei curtindo o lugar e matando o tempo lendo as inscrições na latinha de óleo de dois tempos com a luz da lua. Bem que eu tentei tirar uma soneca, mas não consegui, espichava o esqueleto no banco, mas não pegava no sono . Mesmo armado, eu me sentia vulnerável para dormir ao relento.
Enquanto curtia a noite no lugar, insone, deitado no banco de cimento, chamou-me atenção o barulho agudo de uma freada brusca feita por um carro que passava. Fiquei apreensivo e, protegido da visão de quem estava no carro observei a cena: Uma mulher desce do carro e sai correndo em direção ao barranco. Logo em seguida um homem a persegue seguido de uma criança. O homem alcança a mulher a alguns metros antes do abismo e a carrega, puxando pelos braços, de volta para o carro. Todos entram no carro e este arranca em alta velocidade, cantando novamente os pneus. Meu amigo Calmon dormia sono profundo e não acordou. Nunca saberei o que foi aquilo...
Antes de o dia clarear, acordei o companheiro de viagem. Não agüentava mais esperar. Vamos cabra, que o dia vai raiar!
Ainda no escuro passamos por Angra do Reis e com o dia raiando, ao chegarmos na região de Mangaratiba, uma forte ventania lateral tornou a viagem mais difícil. Não foi fácil manter a RD na pista com aquela ventania. Ela ia inclinada com se estivesse fazendo uma curva.
Chegamos na casa dos pais do Calmon a tempo de tomar o café da manhã com a família dele.
A moto estava mostrando todo o sofrimento que foi a viagem. Muita poeira por todo canto e um pneu traseiro literalmente na lona. Impossível pensar em fazer a viagem de volta com ele. Precisávamos comprar um pneu novo.
Saímos cedo em busca de uma loja de pneus. O Calmon falou que sabia de lojas na Vila Isabel e lá fomos nós, pela Avenida Brasil.
Um semáforo fecha. Fico na "linha de largada" entre dois ônibus. Luz verde. Arranco com a RD na frente do tráfego e sobre um viaduto a moto começa a balançar. Falo para o amigo se segurar, mas ele tenta ver o que está acontecendo e provoca ainda mais instabilidade na moto. Consigo, milagrosamente, parar a máquina antes de ir para o chão logo depois do viaduto. Diagnóstico simples: Pneu estourado. Que sorte ter saído na frente e não ter veículos por perto!
Mais sorte ainda. Havia um borracheiro do outro lado da avenida.
Fizemos um reparo improvisado e agora, com muito cuidado, fomos procurar um pneu novo. Encontrei um da marca FUNSA, uruguaio. Com muito mais segurança, voltamos para Nilópolis para dar cabo da Rabada com Agrião.
Encontramos uma mesa farta. Antes tomamos umas cervejas para relaxar e em seguida fomos à luta. Eu nunca fui de gostar de carnes com ossos, cartilagens, nervos ou com gordura. A rabada boiava em caldo gorduroso... Sorte minha que havia alternativas na mesa. Preferi um filét grelhado e tive que agüentar as reclamações do Calmon. Tempos depois, em uma outra ida ao Rio, o Calmon recomendou que a mãe dele somente fizesse a rabada, que não nos desse opções. Aí eu tive que encarar. Até que gostei.
A experiência vivida na sexta feira nos fez voltar pela previsível Dutra. Saímos do Rio na manhã de domingo e a RD, agora lavada e revisada e bem calçada, voltou para as estradas asfaltadas, seu habitat natural.
Pegamos uma forte chuva entre Resende e Queluz. Quando o tempo melhorou, paramos para secar as roupas e eu aproveitei para dar uma checada nas velas e platinados. Eu sempre viajava com aquele sistema de luzinha e pequenos "jacarés" para ajustar o ponto de ignição. Será que algum motociclista de iniciação mais recente já ouviu falar disto?
Secando roupas na Dutra
Em Aparecida fizemos uma visita à Basílica da padroeira do Brasil (ainda não era oficialmente, creio) e depois tocamos direto para Santos. Por volta das três horas da tarde estávamos em casa, ainda a tempo de tomarmos umas cervejas com amigos que nos aguardavam.
Na Basílica de Aparecida
Decididamente, esta viagem me deixou apaixonado pelo Litoral Norte de São Paulo. Assim que foi lançada, em 1982, comprei uma DT 180. E, com uma moto apropriada, posso dizer que conheci bem esta região antes dela ter perdido aquela magia de lugar selvagem. Gostei tanto do "brinquedo" trilhas que passei dezoito anos andando apenas com motos do tipo trail. Ainda hoje, mesmo tendo uma Shadow 600 como companheira de estrada, mantenho também uma Falcon para as eventuais saídas do asfalto.
Luiz Almeida
Fortaleza - Ceará